O princípio republicano aplicado à fiscalização tributária
Dias atrás o Ministro Alexandre de Moraes, do STF, exarou Despacho no Inquérito 4.781, através do qual apura a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares.
A análise no Despacho teve por foco saber os critérios que levaram a Receita Federal a selecionar 133 pessoas para serem especialmente fiscalizadas. Uma das conclusões preliminares apontadas pelo Ministro é que existe a concreta possibilidade de ter ocorrido “manipulação, desvio de finalidade e quebra das necessárias legalidade e impessoalidade”. Embora o Despacho não mencione, tais requisitos compõem aquilo que se denomina de princípio republicano, ao qual toda a administração pública está vinculada.
Heleno Torres afirma que a legalidade é “uma exigência do princípio republicano e fundamento do agir administrativo”. Também Humberto Ávila assevera que “é o princípio republicano que estrutura o bem público, a ser constatado no direito positivo.”Eminentes autores, como Geraldo Ataliba e Roque Carrazza também tratam do assunto com maestria. Escrevi que o princípio republicano é a estrutura jurídica criada pela sociedade de modo a permitir que o governo aja em prol do bem comum, aplicando à coisa pública uma função social, em busca da efetivação dos direitos fundamentais, com respeito à lei.
Um dos âmbitos da atuação da administração pública, fruto do princípio republicano, é centrado na isonomia de tratamento que todos devem receber. Nesse sentido, sua atuação deve ocorrer de forma impessoal (art. 37, caput), o que denota a igualdade de todos perante a aplicação das normas.
No caso em apreço, segundo o Despacho do Ministro, existem elementos para afirmar que a fiscalização sobre esse grupo de 133 pessoas ocorreu com forte violação aos referidos princípios, acarretando desvio de finalidade, uma vez que “não se verificou a necessária atuação de forma técnica e impessoal, pois a escolha fiscalizatória em relação a ‘agentes públicos’ foi realizada sem critérios objetivos e com total ausência de razoáveis indícios de ilicitude, baseada em fatores ‘genéricos’”.
A Receita Federal, conforme consta do Despacho, informou quatro subgrupos que guiaram a análise, quais sejam: (1) os declarantes de IR, como os servidores federais da administração direta, mais os 65 mil maiores rendimentos tributáveis da administração indireta, e todos do Ministério da Fazenda; (2) os servidores federais com cargos comissionados; (3) a lista de agentes públicos (Judiciário, Ministério Público e parlamentares) encaminhadas pelo TCU à RFB em 2016 contendo indícios de variação patrimonial a descoberto com base em IR, totalizando 770 ocorrências; e (4) aproximadamente 315 mil pessoas, subgrupo composto pelos declarantes de IR, como servidores estaduais/distritais e municipais da administração direta e indireta cujos rendimentos tenham sido iguais ou superiores a R$ 150 mil. Usando tais critérios, a Receita Federal informou que escolheu cerca de 818 mil pessoas para serem fiscalizadas.
O ponto de destaque indicado no Despacho do Ministro Alexandre de Moraes ocorre quando se passa dessas 818 mil pessoas para os 133 indivíduos que estavam exatamente sob a fiscalização questionada, ou seja, uma ínfima parcela daquele montante. Aqui é que se encontra o busilis da questão, pois, informações da Receita Federal mencionadas no Despacho indicam que, dentre os critérios para esta escolha, constam “notícias na imprensa de participação de agentes públicos em esquemas fraudulentos”.
Ou seja, segundo informado, a imprensa pauta a escolha de quem vai ser fiscalizado pela Receita Federal. Isso é muito preocupante, desde sempre. Em meados do século passado, o velho magnata da imprensa brasileira, Assis Chateaubriand, achacava as pessoas publicando notícias inverídicas ou fofocas em seu aglomerado de jornais, rádios e televisões, espalhados por todo o Brasil (falo dos Diários Associados, fortíssima rede de comunicação brasileira, em tempos pré-internet e contemporânea ao início da televisão brasileira, através da TV Tupi). Os achacados acabavam por ceder à pressão, que poderia ser por mais verbas para publicidade em seus veículos de imprensa, ou doações para o MASP, ou ainda, por interesses menores e muitas vezes escusos de Chateaubriand.
A situação só piora quando se vê, ao lado da mídia tradicional, uma ampla rede difusa de comunicação composta pelas mídias sociais (Facebook, Instagram, Twitter, Linkedin etc.). Acresçamos a esse conjunto as ameaças relatadas no documentário Privacidade Hackeada (acerca do escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica) e no filme Snowden – Herói ou Traidor, do premiado diretor Oliver Stone, e teremos um coquetel verdadeiramente explosivo.
As regras dos órgãos de fiscalização devem ser aprimoradas, sob pena de termos muita confusão envolvendo não só autoridades, mas qualquer do povo. Apareceu na mídia, tá fiscalizado. Pode isso, Arnaldo? Seguramente não.
A conclusão do Ministro Alexandre de Moraes no Despacho foi no sentido de que “são claros os indícios de desvio de finalidade na apuração da Receita Federal, que, sem critérios objetivos de seleção, pretendeu, de forma oblíqua e ilegal investigar diversos agentes públicos, inclusive autoridades do Poder Judiciário, incluídos Ministros do Supremo Tribunal Federal, sem que houvesse, repita-se, qualquer indicio de irregularidade por parte desses contribuintes”.
É inegável que os órgãos de fiscalização, dentre eles a Receita Federal, tem o dever de fiscalizar, porém, ao fazê-lo, devem agir com a mais completa isonomia e impessoalidade, e dentro dos parâmetros legais, sem usar esse poder que lhe é atribuído pelo ordenamento jurídico para escolher aleatoriamente como alvo de análise uma única pessoa ou um grupo delas.
É óbvio que ninguém está acima da lei, e mesmo as mais altas autoridades do Estado brasileiro estão sujeitas à fiscalização. Afinal, repete-se: todos são iguais perante a lei. Porém o poder de fiscalizar deve ser exercido de igual modo sobre o conjunto de contribuintes, escolhidos com critérios objetivos, e não subjetivos, pois isso viola a impessoalidade e a legalidade – em suma, viola o princípio republicano, que alcança estes dois princípios, dentre diversos outros.
A bem da verdade, a Receita Federal se pauta, desde sempre, dentro de parâmetros republicanos na fiscalização. Resta ver se o presente caso se caracteriza dentro dessa regra geral, ou se trata de um ponto fora da curva. Este é o principal aspecto a ser apurado.
O poder de tributar envolve o poder de destruir, disse John Marshall (1755-1835), Juiz da Suprema Corte dos EUA, no caso McCulloch v. Maryland, em 1819, pois a tributação dá excessivo poder aos governos – a qualquer governo. Cerca de 100 anos após essa frase de John Marshall surge a proclamação de outro Juiz daquela Corte, Oliver Wendell Holmes (1841-1935): Impostos são o preço que nós pagamos por uma sociedade civilizada. Este deve ser o foco dos órgãos de fiscalização e, a rigor, é o usual padrão de normalidade no Brasil, conforme comentei no já remoto ano de 2013, aqui nesta ConJur (Tributação fica entre ‘preço da civilização’ e ‘poder de destruir’).
Se realmente tiver sido feita fiscalização seletiva, sem critérios definidos, com autoridades de alto escalão, imagine-se o que pode ocorrer com a raia miúda, o simples cidadão sem poder, o empresário sem conexões com as autoridades de plantão?
Exatamente por isso que é importante olhar para as propostas de alteração da legislação tributária apresentadas pela Fecomercio-SP. Uma delas propõe a adoção de critérios para exame das declarações de IR que poderão resultar em malha fina, sugerindo acrescer o seguinte texto ao CTN:
Art. 45-A A autoridade tributária, ao disponibilizar as regras e instruções para a declaração de ajuste do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física – IRPF, informará os critérios que serão utilizados para exame das declarações e que poderão resultar na retenção em malha.
Parágrafo único. A não observância da norma inscrita no caput deste artigo constitui infração disciplinar grave, sendo obrigatória a abertura do correspondente inquérito administrativo, de ofício ou mediante denúncia de terceiro, independentemente de eventuais responsabilizações, inclusive em sede penal.
Basta alterar a legislação ordinária, sem mexer na Constituição. Esta, aliás, precisa apenas ser cumprida – o que já seria um grande avanço.
Disponivel em: https://www.conjur.com.br
Data: 24/09/2019